terça-feira, 24 de julho de 2007

Não é possível desculpar o indesculpável


Transportes




Tito Bernardi*





O gesto obsceno do assessor especial do Presidente da República, Marco Aurélio Garcia, veiculado no final da noite do dia 19 de julho, relacionado ao noticiário do maior acidente aéreo da história do País, não é "desculpável" como pretendeu fazer crer o descontraído assessor e os poucos membros do governo que saíram em sua defesa. Na mesma noite do gesto, sua justificativa, veiculada pela mesma Rede Globo, e em seguida por alguns jornais, menciona que teria sido "um momento de extravasamento".





À Rede Globo, na mesma noite do fatídico gesto, o extrovertido assessor disse que o gesto representava a demonstração de sua "indignação frente a uma determinada versão que creditava ao governo a responsabilidade por um acontecimento dramático" (SIC). Para Garcia, "não é bem assim" - resumiu, em seu estilo excessivamente descontraído.





No dia seguinte (20), talvez pressionado por alguns membros do governo eventualmente constrangidos pela cena "dantesca" (a imagem é do Senador Pedro Simon - PMDB-RS), o loquaz assessor divulgou uma nota à imprensa que, ao invés de representar um pedido de desculpas, exala a mais pura arrogância que tem caracterizado as manifestações públicas desinibidas dos políticos brasileiros.





Na nota, assim como em suas esfarrapadas justificativas iniciais, o desenvolto assessor afirma, de forma paradoxalmente singela, que "sem nenhuma investigação, ou parecer técnico consistente, importantes setores dos meios de comunicação não hesitaram, poucas horas depois do acidente, em lançar sobre o governo a responsabilidade da tragédia de São Paulo". A afirmação deixa transparecer uma idéia obssessiva do atual governo. Do presidente Lula ao mais modesto burocrata da máquina aparelhada, ao sinal de qualquer fato que ofereça "perigo" à imagem dos aplicados governantes, logo se apegam às teorias conspiratórias de que a "imprensa" estaria forçando a barra contra o governo.





O presidente chegou a afirmar que, além da culpa da imprensa, as críticas à situação do Brasil seriam fruto de uma certa "mania" do povo brasileiro em criticar o próprio país. O mote do mais alto mandatário, repetido insistentemente em vários escalões da burocracia estatal, chegou ao ápice, sem dúvida, na nota do versátil assessor especial Marco Aurélio Garcia.





Se é verdade que "sem nenhuma investigação, ou parecer técnico consistente" seria prematuro lançar a responsabilidade sobre quem quer que seja, é também verdade cristalina que, em qualquer país que sonhe em viver um regime democrático, não é possível cercear o direito da imprensa em informar e debater temas de interesse público.





Também é verdade que as chamadas "autoridades competentes" fizeram o que, na mais recente gíria, convencionou-se chamar de "dar um perdido" logo após o acidente. Em linguagem clara: sumiram. Na noite do acidente nada de Infraero, nada de ANAC, nada de Presidente da República, nada de Marco Aurélio Garcia, nada de Waldir Pires. O mais alto mandatário da nação, Luiz Inácio "Lula" da Silva, só fez um tímido e opaco pronunciamento 72 duas horas depois do acidente.





Ao que parece, os membros do governo optaram por ficar "entocados" em seus gabinetes, à espreita de um acontecimento que "aliviasse", sim, a situação perante a opinião pública. Daí a repercussão do infeliz mas sintomático gesto mais que obsceno de Marco Aurélio Garcia.





Somente depois que a desinformação prevaleceu, sem que as autoridades do setor adotassem sequer medidas de emergência, é que, timidamente, o governo divulgou algumas poucas informações. Somente após mais de uma hora do acidente é que a empresa veio a público informar o modelo do avião que tinha se chocado contra o galpão de TAM Express. Essa opção do governo - silêncio, desinformação ou omissão, por si só, já justificaria o tom crítico do noticiário, como seria previsível em qualquer país democrático.





Mas não no Brasil, principalmente no Brasil de Marco Aurélio Garcia. Neste país fictício, que povoa as mentes iluminadas de muitos dos atuais governantes, a imprensa deveria permanecer em silêncio completo. Sequer abortar qualquer ocorrência de trânsito relacionada ao acidente. Nem pensar em prestar serviços aos usuários do fatídico aeroporto. A imprensa idela, desse Brasil imaginário de Marco Aurélio Garcia, a imprensa só abordaria o "problema" 72 horas depois, quando o mais alto mandatário da Nação fez o seu opaco pronunciamento.





Ou, mais cautelosa ainda, toda a imprensa nacional deveria aguardar um pronunciamento da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, que até o momento não se pronunciou sobre o caso. Não se trata, como pretendeu fazer crer o fagueiro assessor, de forçar as esforçadas autoridades competentes a apontar desde logo as causas do acidente. Também não seria de se esperar que, em apenas 72 horas, a "agência reguladora" do setor procurasse sanar as deficiências que vêm sendo exaustivamente apontadas há 10 meses, desde o acidente com o Boeing da Gol. Isso seria esperar demais, e o povo brasileiro é paciente demais para aguardar soluções.





Mas o lépido assessor deixou de observar que a ANAC fez silêncio que beira a omissão. Em seu site (http://www.anac.gov.br/), a "agência reguladora" não ostenta nenhuma orientação aos passageiros, usuários do sistema aeronáutico nacional. Apenas uma breve nota de "solidariedade" com os familiares das vítimas. Nada mais. nenhuma palavra sobre como ficam os vôos marcados, sobre procedimentos a serem adotados em regime de emergência, orientação às famílias, nada.





Apesar desse lapso da ANAC, que deixou de inserir em seu site qualquer orientação aos usuários do setor aeronáutico nacional, e nada divulgou à imprensa, dois diretores da operosa "agência" foram condecorados na manhã ensolarada do dia 20, em Brasília, por "méritos prestados à Aeronáutica brasileira" (SIC).





Na cerimônia, foram entregues as medalhas de "mérito Santos Dumont" para o diretor-presidente da Anac, Milton Zuanazzi, e a também diretora da agência Denise Abreu. O evento ocorreu na Base Aérea de Brasília. Santos Dumont, se vivo fosse, certamente ficaria embevecido com tal solenidade, sobretudo por ter sido realizada em momento como esse.




À saída da cerimônia, conforme informam os jornalistas que ali compareceram para cobrir o festivo evento, os dignos dirigentes da ANAC nada quiseram falar à imprensa.





O silêncio das autoridade competentes, num momento em que seus conhecimentos seriam úteis ao esclarecimento da população, é sintomático. Também a Infraero quedou-se silente logo após ao acidente em Congonhas. No dia seguinte, distribuiu à imprensa imagens, divulgadas pela própria Radiobrás (serviço noticioso do governo federal), que dão a entender que o Airbus da TAM teria descido em velocidade mais alta que outros aviões do mesmo porte.





No dia 19, logo as imagens terem sido exibidas pelas emissoras de TV, o presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, apressou-se a eximir a estatal de qualquer "culpa" no acidente. "Garanto que a Infraero não teve nada a ver com o acidente. Nada a ver. Eu assisti a fita e vi o que aconteceu", disse o brigadeiro, referindo-se especificamente às imagens do momento em que o avião pousou em Congonhas.





Ora, se para o laborioso Marco Aurélio Garcia é cedo para qualquer "atribuição de responsabilidade", como ele classificaria a postura o presidente da operosa estatal que administra os aeroportos tupiniquins? Estaria o nobre brigadeiro apressando-se em passar por cima de qualquer investigação oficial? Seria ele dotado de poderes paranormais de advinhação? Como Marco Aurélio Garcia é versátil, e tem procurado emprestar seu talento aos mais diversificados setores da adminsitração pública brasileira, caberia a ele classificar a postura da Infraero também. Até mesmo para esclarecer a opinião pública sobre a verdade, ou sobre a conveniência da distribuição das imagens, pois a imprensa brasileira, a seu ver, conspira contra o governo.





Entretanto, como o Marco Aurélio Garcia não fez qualquer referência ao fato de a Infraero ter-se apressado em distribuir imagenes e comentários taxativos por meio de seu presidente, apesar de ser um assíduo telespectador de telejornais, presume-se que ele não se incomoda tanto quando a versão divulgada favorece o governo do qual faz parte. Ou, em português mais claro, Marco Aurélio Garcia não se opõe à distribuição das imagens de Congonhas, seguidas de da versão do brigadeiro que "exime" a estatal.





Ou seja, a versão do fato, quando favorece o governo de Marco Aurélio Garcia, deve prevalecer. Mas, se por algum desvio de personalidade, a imprensa quiser cobrir todos os ângulos de uma notícia... aí haverá uma conspiração.





Na tortuosa forma de raciocinar do importante assessor especial, ainda que fique comprovada eventual falha técnica do Airbus - fato que teria provocado o seu "extravasamento" - não há como eximir o governo da responsabilidade pelo caos aéreo. A quem cabe manter e construir aeroportos? A quem cabe manter um número razoável de vôos em um aeroporto urbano construído na década de 30? A quem caberia supervisionar as obras no aeroporto de Congonhas? A quem cabe, efetivamente, fiscalizar a atuação das companhias aéreas?





Já que se arvora em um assessor mais que especial, capaz de envolver-se em assuntos que vão do suposto asilo político a Saddam Hussein à crise do gás boliviano, passando naturalmente, pela crise aérea, Marco Aurélio Garcia deveria apressar-se em responder tais perguntas. Suas respostas estariam à altura de sua reconhecida compet~encia para tratar do tema.





Na realidade, tanto o brigadeiro José Carlos Pereira, como Marco Aurélio Garcia, foram apressados. É princípio básico do Direito Penal brasileiro que, ocorrendo um acidente com morte, deve haver uma investigação, um inquérito policial para apurar causas e responsabilidades. Sendo os entes estatais diretamente vinculados à atividade aeronáutica, jamais, em tempo algum, as autoridades do setor poderiam furtar-se a prestar esclarecimentos. É cedo para a Infraero pretender "eximir-se" de responsabilidades...





Não se pode afirmar que Marco Aurélio Garcia seja despreparado para o exercício do cargo que ocupa, como apressarem-se a afirmar os líderes do PSDB (esses "maquiavélicos" tucanos...). Afinal, Marco Aurélio Garcia é bacharel em Direito, vinculado à tradicional UNICAMP, e não desconheceria que a atuação do governo no acidente (seja por omissão, negligência ou qualquer tipo de responsabilidade) deve ser, obrigatoriamente, investigada. Não só investigada. Exaustivamente investigada, até porque o chamado "apagão aéreo" vem sendo denunciado já há alguns meses. Um assessor de tal envergadura intelectual não poderia ignorar que toda sociedade - não só a imprensa - deveria não só investigar, mas questionar todas as autoridades sobre o grave acidente.





E qualquer homem público, por mais iluminado que seja, não pode sentir-se "incomodado" ou melindrado pois a função que exerce é pública, ou seja, ele deve satisfações ao público (os contribuintes, aqueles que pagam impostos que subsidiam os gordos venciomentos percebidos pelos tais homens públicos).





A pressa e a ansiedade de Marco Aurélio Garcia em ver refeita a "imagem do governo", com seu tresloucado gesto de "extravasamento", demonstram tão-somente o pensamento totalitário e antidemocrático que permeia a cabeça dos políticos brasileiros. A preocupação obssessiva com a "imagem" nada mais é que a tradução da mais rasteira intenção de perpetuar-se no poder.





Por isso, e não só pelo indesculpável gesto, Marco Aurélio Garcia não pode mais permanecer um minuto sequer no governo.





*Tito Bernardi, jornalista e advogado, é editor do Expresso da Notícia.

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