Reintegrados por programa estatal, ex-guerrilheiros relatam maus-tratos e abusos de que eram vítimas na selva
Ruth Costas, BOGOTÁ
Após dez anos de combates na selva, viagens arriscadas para transportar cocaína e negócios escusos com a nata do submundo colombiano, Carlos, comandante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), entrou em 2006 numa delegacia do interior disposto a deixar essa realidade para trás. Ele se entregou para incorporar-se ao Programa Nacional de Desmobilização e Reintegração, criado pelo governo colombiano para inserir na sociedade os ex-membros de grupos armados.
''''Fazia algum tempo que eu tinha vontade de ficar mais perto da minha família e na organização (as Farc) você é obrigado a abrir mão desses vínculos pessoais'''', contou Carlos em entrevista ao Estado - o nome é fictício porque ele ainda teme uma retaliação da guerrilha. ''''Além disso, quando eu tomei essa decisão, havia brigado com alguns comandantes por questões econômicas. Ainda estava com o nome limpo, mas sabia que, pela posição que ocupava no grupo, mais cedo ou mais tarde eles poderiam me ordenar que cometesse um crime de lesa-humanidade, como seqüestrar ou dar baixa (matar) em algum civil, pelo qual eu teria de responder na Justiça. Então pensei: essa é minha última chance de sair.''''
A história de Carlos não é única. Todos os dias os meios de comunicação colombianos anunciam a deserção de guerrilheiros. Só na segunda-feira, 18 homens da Frente 16 das Farc, cujo comandante, Negro Acácio, foi morto no ano passado, resolveram entregar-se às autoridades por causa de desentendimentos com o novo chefe. ''''Ele cortou cigarros, refrigerantes, e, nos últimos meses, até produtos de asseio pessoal e roupa interior. Levava boa vida e achamos que guardava dinheiro para escapar, enquanto passávamos fome'''', explicou um rebelde.
De acordo com o governo colombiano, desde que o presidente Álvaro Uribe chegou ao poder, em 2002, abandonaram a luta armada 8.235 guerrilheiros das Farc, 1.941 do Exército de Libertação Nacional (ELN) e 45.353 membros de grupos paramilitares de ultradireita - que chegaram a um acordo com o governo para desmobilizar-se.
Os rebeldes deixam as Farc por vários motivos. O principal deles, especialmente entre os baixos escalões, é o rígido código de conduta que o grupo impõe a seus quadros. ''''Os guerrilheiros também são reféns da guerrilha'''', disse ao Estado Frank Pearl, conselheiro presidencial para reintegração. ''''Desertar é o único caminho que eles têm para a liberdade.'''' A partir do momento que se integra ao grupo, o novo rebelde não pode mais encontrar seus parentes. Sair para ver a família é falta grave e só os comandantes podem pedir que suas esposas os visitem no acampamento. As guerrilheiras são proibidas de ter filho e, caso fiquem grávidas, são obrigadas a abortar. ''''Uma grávida é um problema para o comando. Nessas situações a ordem é: ou você tira ou tiro eu'''', diz Carlos.
Os guerrilheiros acordam às 4h45 da manhã e têm pouco tempo ou opções para se divertir, mesmo nos fins de semana. ''''Quando havia (uma área desmilitarizada na região do) Caguán, podíamos passear tranqüilamente pelos povoados, beber e dançar. Nos últimos anos em que estive na guerrilha, porém, meu trabalho era ficar o dia inteiro ali, entocado na selva, sem fazer nada. Eu morria de tédio'''', disse ao Estado Ernesto (o nome também é fictício), ex-guerrilheiro que entrou para as Farc com apenas 11 anos. ''''A guerrilha gosta de recrutar entre as crianças porque pode formá-las como querem.''''
Por mais absurdas que pareçam, as ordens devem ser cumpridas sem hesitação e, ao mais leve deslize, o guerrilheiro é submetido a severos castigos. ''''Se o encarregado de fazer a comida deixar queimar o arroz, por exemplo, seu superior pode pedir que ele faça um buraco de 50 metros, sem qualquer necessidade, só para vê-lo ali, cavando o dia inteiro'''', conta Carlos.
CÓDIGO DE CONDUTA
Os rebeldes não podem ver a família. Só comandantes recebem visita das mulheres e filhos algumas vezes ao ano
Os rebeldes não podem se relacionar com civis
Filhos são proibidos: grávidas são obrigadas a abortar
Guerrilheiras fazem os mesmos trabalhos que os homens
Deserção é punida com morte
do site:
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080120/not_imp112119,0.php
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