Mário Vargas Llosa
Embora tenha sido bastante criticada por ter ressuscitado um tema tão execrável e explosivo num país como os Estados Unidos - até o jornal The New York Times, que apoiou sua candidatura, censurou-a em um editorial -, pelo menos aparentemente, o recurso utilizado acabou dando bom resultado: na terça-feira, nas primárias da Virgínia Ocidental, o Estado mais "branco" do país, Hillary obteve uma vitória esmagadora, com mais de 100 mil votos de vantagem sobre seu concorrente.
Um triunfo sugestivo, mas insignificante na prática. Isso porque, por causa da sua escassa população, a Virgínia Ocidental tem um número muito pequeno de delegados - e Obama continua conquistando superdelegados entre os independentes.
Aliás, alguns dos que prometeram respaldar a senadora acabaram decidindo apoiar Obama. E na semana passada John Edwards, que foi pré-candidato nas primárias e vinha sendo cortejado insistentemente pelos dois competidores, decidiu-se também pelo senador. O apoio de Edwards é importante porque ele tem muita influência no meio operário e sindical, onde Hillary é bastante
popular.
CHOQUE RACIAL
Mas, como sublinham os analistas, apesar de Obama, aparentemente, ter sua candidatura assegurada, sem importar o que acontecer nas poucas primárias que ainda faltam, a suja operação de contornos racistas lançada por Hillary poderá ter conseqüências sinistras na futura disputa pela presidência entre ele e o candidato republicano, John McCain. Essa disputa poderá se transformar num confronto entre a América "branca" e a América "negra". Não é algo inevitável, mas há indícios alarmantes.
Todas as pesquisas feitas desde que a senadora se proclamou a favorita dos "brancos" indicam que um número crescente de americanos afirma hoje que o tema racial ou étnico passou a ser importante para eles em suas preferências eleitorais. O que é um sério revés para Obama, que fez da solidariedade entre as diferentes raças, tradições, crenças, convicções e costumes um dos temas fundamentais do seu discurso, desde o inicio da campanha.
FRIEZA
Hillary Clinton não é racista, é claro. Ela é um animal político, frio, tenaz, inteligente e sem escrúpulos. Com a mesma serenidade glacial e destreza com que soube sair dos escândalos e humilhações a que foi submetida por seu marido, Bill Clinton, durante o governo dele, Hillary prosseguiu em sua campanha sem perder o sorriso nem o ânimo, enquanto era derrotada uma e outra vez por um rival que, segundo as sondagens deopinião, é o favorito dos jovens, dos profissionais liberais, dos empresários, dos universitários e, em síntese, dos setores mais modernos e cultos da sociedade americana, deixando para ela os mais incultos, primitivos e provincianos.
Antes dessa manobra racial, a campanha de Hillary já tinha lançado uma outra guerra suja - de índole machista -, que não prosperou. Essa estratégia consistiu em apresentar a senadora como o verdadeiro "macho", nessa disputa. Obama, por outro lado, seria o fraco, o frouxo, o indeciso e - horror dos horrores - o intelectual, alguém a quem seria algo arriscado e suicida confiar o mais alto posto do país no caso de um conflito bélico.
ATITUDE BELIGERANTE
Os anúncios pagos de Hillary apresentaram a senadora numa atitude marcial e beligerante, com a seguinte pergunta: "Quem você preferiria como comandante-chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos?" E, ao lado da senadora, um Obama extenuado, esquálido e submisso, com a fisionomia de uma pessoa indecisa e assustada.
No entanto, essa tentativa para prejudicar Obama não surtiu efeito. Então a senadora, num desses gestos audazes que a caracterizam, decidiu que, como já não era realista pensar na sua indicação, seria possível, sim, contribuir para a futura derrota de seu rival nas eleições presidenciais de novembro, ante o republicano McCain.
Não se trata de uma vingança pessoal, nascida da frustração, mas de um simples cálculo matemático de um político de grandes aspirações. Se Hillary Clinton pretende ser a candidata dos democratas à presidência em 2012, é preciso que nestas eleições o vencedor seja um republicano e não um democrata. Isso porque, se Obama for o próximo presidente, a senadora terá fechadas as portas para sua candidatura à Casa Branca até 2016, o que seria muito tarde para ela. Nada disso pode ser deixado claro publicamente, mas por meio de mensagens indiretas enviadas para o subconsciente e os preconceitos instintivos do eleitorado.
Segundo uma sondagem, 50% dos partidários democratas de Hillary na Virgínia Ocidental afirmam que não votarão em Obama para presidente: se for ele o candidato do partido, eles simplesmente não vão votar ou então vão apoiar McCain.
GUERRA SUJA
Ao mesmo tempo que a senadora envenenava a campanha com racismo, o candidato republicano iniciava sua própria guerra suja, utilizando outro ingrediente explosivo para desacreditar seu quase garantido adversário nas eleições de novembro.
Em uma entrevista coletiva, o candidato republicano disse que, entre ele e Obama, o verdadeiro amigo de Israel era ele próprio, o senador McCain. Afinal, argumentou o republicano, será que isso não ficou provado pelo fato de o líder da organização terrorista Hamas dizer que simpatizava com a candidatura de Barack Obama?
Dessa maneira, uma acusação ventilada sem muita eficácia há alguns meses foi ressuscitada e retornou ao primeiro plano do debate eleitoral: Obama seria um muçulmano disfarçado (pois seu pai o foi), um amigo dos palestinos e, portanto, potencialmente, um presidente que daria as costas a Israel, o maior aliado dos Estados Unidos, e estenderia a mão para os terroristas palestinos.
A acusação de McCain tem um amplo alcance e, se emplacar, pode ser decisiva na campanha. Os judeus são uma pequena minoria em número na sociedade americana, mas o lobby judaico, as organizações que apóiam Israel e fazem campanha em favor de políticos que consideram pró-israelenses, hostilizando os que não são, exerce uma poderosa influência econômica e publicitária em toda campanha eleitoral. E, embora nem sempre os seus candidatos sejam vitoriosos, aqueles considerados seus inimigos sempre perdem.
CONDENAÇÃO DO HAMAS
Desde que McCain fez aquela declaração, Obama multiplicou os desmentidos perante diversas associações judaicas e pró-israelenses. O senador democrata recordou novamente as posições que assumiu no Legislativo do Estado de Illinois e no Senado americano em prol de Israel, condenando em termos inequívocos o terrorismo do Hamas. E repetiu que, embora seu pai fosse muçulmano, sua mãe o educou como cristão, e o mesmo ocorreu com sua mulher, Michelle.
Muitos judeus americanos respaldaram suas afirmações, desmentindo as insinuações de McCain.
Tudo isso é uma indicação de que, desta vez, a campanha presidencial será mais virulenta do que as outras. Obama será bem sucedido ao enfrentar essas guerras sujas lançadas contra ele? Acredito que sim, embora isso vá lhe custar muito trabalho - e ele não pode se permitir cometer um único erro.
Meu otimismo não se baseia tanto nas pesquisas, mas na atitude que ele tem mantido, em meio à sujeira e insídia lançadas contra ele. Não respondeu com as mesmas armas nem com vitupérios. Continua imperturbável, com seu discurso reformista, de idéias, pedindo união, repudiando toda forma de sectarismo e intolerância, com suas propostas concretas e realistas a favor dos fracos, dos marginalizados, dos lutadores, dos entusiastas, e uma fé contagiante nas instituições democráticas.
É verdade que, com freqüência, Obama se expressa mais como um intelectual do que como um político profissional, mas isso, por sorte, em vez de desprestigiá-lo, faz com que ele conquiste a simpatia e o entusiasmo de milhões de seus compatriotas. Seu discurso continua atraindo sobretudo os jovens, de todas as raças, que se apresentam aos milhares para trabalhar como voluntários em sua campanha em todo o país, fortalecendo um mecanismo que provou ter uma eficácia contundente.
Esperemos que as campanhas de guerra suja não prevaleçam e, por uma vez, o idealismo e os princípios derrotem as manobras dos políticos.
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