No discurso de abertura da reunião de cúpula da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou os elevados propósitos que levaram o Brasil a propor a criação de mais um organismo internacional: 'Uma América do Sul unida mexerá com o tabuleiro do poder no mundo.' Nesta frase tão curta há dois erros fundamentais. Em primeiro lugar, a América do Sul, mesmo unida, não terá a influência imaginada pelo presidente Lula nos negócios globais. A região carece dos elementos de poder necessários para mudar as posições no tal 'tabuleiro'. Não tem poder militar ou econômico e não dispõe de um capital de influência suficiente para satisfazer as ambições do presidente. Mas isso, na verdade, é secundário, pois o fato é que a América do Sul não é unida e acontecimentos recentes mostram que as brechas entre alguns países estão se alargando, e não se estreitando.
A própria cúpula da Unasul deixou evidente que, mesmo que a retórica de todos seja a da integração econômica e política, as condições objetivas conduzem vários países para direções diferentes e para posições irreconciliáveis. A concepção da Unasul, afinal, foi marcada pelo pecado original. A criação de um organismo regional desse gênero deveria ser a etapa final de um processo de união do Mercosul e da Comunidade Andina. Mas, até agora, esses dois blocos não passam de sacos de gatos, que não conseguem pôr-se em harmonia nem mesmo para alcançar objetivos mínimos.
Com a Unasul não poderia ser diferente. Presidentes de vários países consideram ter criado mais um foro de discussões. Outros, como o presidente Lula, acham que criaram um organismo internacional que terá voz e influência nos assuntos globais. A discrepância não acaba aí. O presidente Tabaré Vazquez, do Uruguai, nem sequer se deu ao trabalho de ir a Brasília. Mandou seu vice-presidente, por considerar que a reunião não produziria nada de útil. Os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez - que já havia ridicularizado o nome originalmente dado pelo Itamaraty ao novo bloco, 'Casa' -, e do Equador, Rafael Correa, somente concordaram em assinar o ato constitutivo na undécima hora. O presidente do Peru, Alan Garcia, retirou-se após assinar o ato, sem participar do debate entre presidentes.
O Conselho Sul-Americano de Defesa, outra proposta do governo de Brasília que deveria adquirir vida jurídica durante a cúpula da Unasul, encontrou resistências maiores. Na definição do ministro Nelson Jobim, o Conselho 'não terá nenhum poder de intervenção militar, não terá nenhuma característica de aliança militar e será, em essência, um órgão de articulação de políticas de defesa entre países sul-americanos'. Para os governantes que querem constituir uma aliança militar regional, obviamente sem a participação dos Estados Unidos, esse formato não serve. E também não serve para quem apenas deseja dispor de um organismo sub-regional que se substitua à OEA - onde os Estados Unidos estão representados - na solução de crises localizadas, pela simples e boa razão de que só países membros de uma aliança militar podem articular suas políticas de defesa. Ou seja, a proposta brasileira contém um paradoxo e, justamente por isso - e para que a rejeição cabal do tal Conselho não fosse um fiasco retumbante para o governo Lula -, a presidente do Chile, Michele Bachelet, sugeriu a criação de um grupo de trabalho para 'estudar' o assunto.
Não bastasse tudo isso, o documento constitutivo da Unasul é uma bofetada nos parlamentos nacionais dos 12 países signatários. O documento contém um dispositivo que autoriza a nova organização a funcionar antes mesmo que o tratado receba a aprovação dos Congressos nacionais. Em Brasília, falava-se que o Itamaraty introduziu a Medida Provisória no direito internacional - o que seria uma piada, se não fosse um precedente da maior seriedade.
E não foi essa a única precipitação que marcou a criação da Unasul. Antes mesmo de ser constituída, ela já tinha um secretário-executivo em pleno exercício de suas funções. Para completar o fiasco, nas véspera da reunião de cúpula, o secretário-executivo, o ex-presidente do Equador Rodrigo Borja, renunciou ao cargo. Para ele, a Unasul é um foro de discussões e não uma 'instituição orgânica'. Em outras palavras, não quis se comprometer com uma academia de debates - pois foi isso o que se criou.
http://txt.estado.com.br/editorias/2008/05/27/edi-1.93.5.20080527.3.1.xml
Nenhum comentário:
Postar um comentário